A Doença Renal Crônica (DRC) é uma condição caracterizada pela deterioração progressiva da função renal ao longo do tempo e chega a afetar 10 milhões de brasileiros e 850 milhões de pessoas no mundo. Como os rins possuem funções importantíssimas como excreção de toxinas, controle da pressão arterial e regulação do pH sanguíneo, diversas limitações acompanham o indivíduo com DRC.
Para haver o correto manejo, é de extrema importância o entendimento do nível de dano renal de cada paciente, aplicando-se diferentes métodos terapêuticos. Nos últimos estágios da DRC (falência renal) há necessidade de hemodiálise e até transplante renal, o que diminui substancialmente a qualidade de vida dos pacientes.
O que é a Doença Renal Crônica?
A Doença Renal Crônica é definida como uma lesão renal em um período > 3 meses. Essa lesão pode ser verificada através da redução da Taxa de Filtração Glomerular (TFG<60ml/min/1,73m²) ou evidenciada em outros exames (proteinúria, sedimentos urinários, histopatológico alterado, deformações anatômicas presentes em USG), mesmo que o TFG esteja normal.
Como calcular a Taxa de Filtração Glomerular (TFG)?
A melhor maneira de avaliar a TFG seria com uma substância que não é produzida pelo nosso organismo e que não sofre os processos de reabsorção, secreção e metabolização renal. Por isso, a substância ideal para esse cálculo seria a inulina, já que em um rim perfeitamente funcionante, 100% da inulina que “entrasse” seria filtrada e excretada.
No entanto, na prática, utilizamos a creatinina, um metabólito do tecido muscular. Com o nível de creatinina no sangue, conseguimos determinar a TFG através da fórmula de Cockcrof-Gault (menos específica) ou por calculadoras digitais como a CKD-EPI (mais específica e mais utilizada) e MDRD.
![Fórmula de Cockcroft-Gault para cálculo da TFG. Fonte: UNASUS link: https://moodle.unasus.gov.br/vitrine29/pluginfile.php/6064/mod_resource/content/1/ebook/28.html](https://cdn.prod.website-files.com/602a70da400a92b1dc65f091/65400bca67ab17f5b0e3188b_fFAz2MhAsJi7_bF_soeN4LYW3XRQKJWzfJCsb3xFAKJ-bB7YTAEK-hwnBbad2SZUV9813ioljRe0zU5Ho_KY9tdTLQGhG4UUY_Btog55xYz1roGuNnMQpZMF8uUJ1a69p8vqal3j-peBSK2YxpnNsA.png)
Como alternativa para a creatinina para calcular a taxa de filtração glomerular, têm-se a cistatina C, que pode ser superior em pacientes em extremos de idade, com hepatopatias, alta taxa de massa muscular ou desnutrição.
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Causas da Doença Renal Crônica
A Doença Renal Crônica pode ser causada por uma variedade de fatores e condições médicas. As causas mais comuns incluem Hipertensão Arterial e Diabetes. Outras possíveis causas são pielonefrite crônica, litíase, lúpus, progressão de insuficiência renal aguda e glomerulonefrites, vasculites, abuso de AINEs (anti-inflamatórios não esteroidais) e uropatia obstrutiva.
Identificar a causa da DRC é necessário, pois o primeiro passo para evitar sua progressão é tratar a etiologia base.
Quadro Clínico
As repercussões clínicas da Doença Renal Crônica são muitas e são decorrentes da perda da funcionalidade dos rins, onde há menor capacidade de filtração e excreção de toxinas, menor produção de hormônios (eritropoetina) e retenção hídrica (hipervolemia) e de eletrólitos que impedem o equilíbrio ácido-base do sangue.
Uremia
Os sintomas urêmicos são decorrentes da redução da excreção de metabólitos, que em excesso, tornam-se tóxicos. Importante lembrar que não é devido apenas ao acúmulo de ureia e creatinina (são apenas marcadores), mas de várias outras substâncias. A toxicidade leva a náuseas, vômitos, perda de apetite, sonolência e confusão mental.
Anemia
Ocorre pela menor produção de eritropoetina, hormônio que estimula a eritropoiese e gera fadiga, anorexia e palidez. Sendo assim, a anemia na Doença Renal Crônica é do tipo normocrômica-normocítica. No entanto, a falta de apetite e outros sintomas gastrointestinais podem levar a uma certa desnutrição e carência de ferro, vitamina B12 e ácido fólico, componentes essenciais para a eritropoiese.
Distúrbios hidroeletrolíticos
A menor taxa de excreção de ácidos, eletrólitos e água, leva a hipervolemia, hipercalemia e acidose metabólica. O manejo desses distúrbios será visto no próximo tópico, sendo de extrema importância para a melhora da qualidade de vida do paciente.
Distúrbio Mineral Ósseo
A redução da TFG acarreta em hiperfosfatemia. Como o fosfato é um natural quelante do cálcio, no sangue ocorre diminuição da concentração de cálcio. A hipocalcemia leva ao estímulo das paratireoides, gerando um hiperparatireoidismo secundário (altos níveis de paratormônio – PTH). O PTH então remove cálcio dos ossos, o que aumenta o risco de fraturas.
Além disso, como os rins não conseguem produzir vitamina D suficiente, a absorção de cálcio no intestino fica dificultada.
Doenças Cardiovasculares
As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no paciente com essa doença. A maioria falece por um evento cardiovascular (Insuficiência cardíaca, Infarto Agudo do miocárdio, morte súbita) antes de chegar nos últimos estágios da doença e necessitar de hemodiálise.
A manifestação mais comum é a hipertensão arterial (pela retenção hídrica-eletrolítica), mas outras condições aumentam o risco cardiovascular do paciente, como estado inflamatório generalizado (lesão endotelial e consequente hipercoagulabilidade), dislipidemia, calcificações vasculares, pericardite e hipertrofia do ventrículo esquerdo (devido a hipertensão).
Outros sintomas
A disfunção eletrolítica também gera outros sintomas, como xerose, prurido, disfunção sexual, incapacidade de concentração, câimbras musculares e neuropatia periférica.
![Principais alterações clínicas da DRC. Fonte: Insuficiência renal crônica e diálise – Raghu V. Durvasula – Jonathan Himmelfarb | MedicinaNET link: https://www.medicinanet.com.br/conteudos/acp-medicine/5400/insuficiencia_renal_cronica_e_dialise_%E2%80%93_raghu_v_durvasula_%E2%80%93_jonathan_himmelfarb.htm](https://cdn.prod.website-files.com/602a70da400a92b1dc65f091/65400bcac8f890616f4df274_UynwrcqJwT4TkoTFHSbkQAU5MCMvC4ebB4NtODk11dNq79TfGjNdZkCfmB3F6DS2REsucXoPWSWJQQRmaAZC11SR-zDrKXZkU_028FoZQIRzhjHsS3EfvhsONs1B8BKGI8JoW2lRCc7BwbCJqYbSaw.png)
Diagnóstico e Estadiamento da Doença Renal Crônica
A Doença Renal Crônica é diagnosticada pela redução da TFG (<60) ou por alterações em outros exames (de urina ou de imagem) por mais de 3 meses. Ela é frequentemente classificada em cinco estágios de acordo com a TFG, que mede a capacidade dos rins de filtrar o sangue. Esta classificação ajuda a determinar a gravidade da doença e a guiar as opções de tratamento.
- G1 (estágio 1): TFG normal
- G2: A TFG é ligeiramente reduzida, indicando lesão renal.
- G3: A TFG é moderadamente reduzida. Os sintomas se tornam mais evidentes, e há maior risco de complicações.
- G4: A TFG é significativamente reduzida, e os pacientes estão em alto risco de insuficiência renal. Tratamentos renais substitutivos, como a diálise, podem se tornar necessários.
- G5: Este é o estágio mais grave, com uma TFG muito baixa ou inexistente. A insuficiência renal é evidente, e o paciente requer tratamento renal substitutivo, como diálise ou transplante renal.
No entanto, para definir o prognóstico real do paciente e o risco de progressão da doença para falência renal, utilizamos a classificação da TFG em conjunto com a taxa de albuminúria, como podemos verificar no diagrama de estadiamento da KDIGO (Kidney Disease Global Outcomes) abaixo.
![Estadiamento DRC. Fonte: Manual de Medicina Harrison 20ª edição](https://cdn.prod.website-files.com/602a70da400a92b1dc65f091/65400bca2ab2b4af817b3ad8_S657HU3rOiam_oY43zrIO1tCT2A3sRpQGwyYqdQ2_ec5KSwdRv3oy_JgG1yQ_Ec1Q-3HWyr55G6o70-ZrVPtWQzFoi4sEO_6hnLv2-hwVWZYE6xa5K8vo3ToSImvbZ6WDQhgSfssZZ9tjGLIW7TYQQ.png)
Indivíduos que se encontrarem na zona verde possuem baixo risco de progressão da doença renal; na zona amarela: risco moderado; zona laranja: risco alto; e na zona vermelha, risco muito alto de progressão para falência renal.
![USG renal sem alterações, onde há boa diferenciação entre córtex (hipoecogênico) e medula (hiperecogênico). Fonte: Radiopaedia](https://cdn.prod.website-files.com/602a70da400a92b1dc65f091/65400bca960ade6ad70a4cd5_TMz7y70T8Qe0uXSwYVDeIXg_qzeYmn8h7yYYQdZCcC0EaQMFqktjYUr0iZ7Cwa9nTKYxyp9CKHHqwcISwWgoXoQUxEoUPDoojQLVyiNZwNVyT8l24tBlUltfl_a4oJrqyH717gknXzngyo1uUWWNZQ.png)
Possíveis alterações no exame de imagem de doentes renais crônicos são: tamanho renal reduzido, afilamento do córtex e perda da diferenciação entre córtex e medula renal no USG. O rim na Doença Renal Crônica pode apresentar tamanho normal ou aumentado nos casos de doença policística renal, anemia falciforme, nefropatia obstrutiva ou por HIV, diabetes, amiloidose ou esclerodermia.
![USG renal com alterações, onde há perda da diferenciação entre córtex e medula renal (ecogenicidade semelhante). Fonte: Radiopaedia](https://cdn.prod.website-files.com/602a70da400a92b1dc65f091/65400bcaf5d106be95dda1da_sCknzytiEFdymEYzynbP03pbCL0E442NiHTVbPMD7AqvFmFN86SRwyXkuNY30pEBVcPF12DhZ8p860EIa9uTGIVTG2NPuaG12BGjxzFfMrYUt_ksnxIUbl03x6UjJJQUnyszdO5UWh2-oXFGzpqTog.png)
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Tratamento da Doença Renal Crônica
O tratamento visa retardar a progressão da doença (tratar a causa base, reduzir proteinúria, controlar a pressão, usar nefroprotetores e corrigir a acidose metabólica) e melhorar qualidade de vida dos pacientes (manejar os sintomas, cessar tabagismo, corrigir anemia).
Tratamento da causa base
O tratamento da causa base é essencial para impedir o avanço da doença. Logo, é necessário o correto manejo da hipertensão, diabetes, lúpus, vasculites ou outras etiologias que possam ter levado o indivíduo a desenvolver a Doença Renal Crônica.
Uso de iSGLT2
No ensaio clínico EMPA-KIDNEY foi comprovado que o uso de ISGLT2 (inibidores do cotransportador 2 da Glicose Sódica), como a empaglifozina, reduziu em 28% o risco de progressão da doença e de mortes por motivo cardiovascular de pacientes com ou sem diabetes.
Controle da Hipertensão Arterial Sistêmica
O alvo da pressão arterial nos indivíduos com o problema é de 130x80 mmHG. Para isso, recomenda-se a restrição de sal e uso de anti-hipertensivos, de preferência IECAs (inibidores da enzima conversora de angiotensina) ou BRAs (bloqueadores dos receptores de angiotensina). Além de seu efeito anti-hipertensivo, os IECAs e BRAs auxiliam no retardo do declínio da função renal e reduzem a taxa de proteinúria.
O IECA ou BRA devem ser suspensos caso haja um aumento de 30% da concentração de creatinina durante as primeiras 8 semanas de uso. Se houver hipercalemia, recomenda-se o uso concomitante de furosemida e metolazona, para que haja maior excreção de potássio (visto que os IECAs e BRAs podem reter), mas caso a condição seja refratária a essas medidas, eles devem ser suspensos.
Nos casos de contraindicação, o verapamil é uma boa opção de anti-hipertensivo e que também possui ação nefroprotetora e anti-proteinúrica.
Acidose Metabólica
Quando o HCO3- estiver < 22 meq, realizar suplementação com bicarbonato de sódio, pois foi verificado que esta conduta retarda a progressão da doença, visto que até as acidoses leves podem levar a maior catabolismo proteico.
Uremia
Os sintomas urêmicos são controlados na maioria dos casos com restrição de proteínas na dieta (até 0,8 g/kg/d), se não for suficiente, talvez a hemodiálise seja necessária para aliviar os sintomas.
Distúrbio Mineral Ósseo
Para evitar a hiperfosfatemia, recomenda-se uma dieta com pouco fosfato e uso de quelantes do fosfato (se P>4,5), como carbonato de cálcio, sevelamer e lantano. Estes dois últimos não geram hipercalcemia rebote e conseguem reduzir a deposição de cálcio nos vasos.
O calcitriol (vitamina D) não é tão recomendado pelo risco de hipercalcemia. No entanto, análogos do calcitriol (Paricalcitol) podem ser indicados (se 25-OH-vitD< 30) para suprimir a produção de PTH. O cinacalcete também pode auxiliar na redução dos níveis de PTH.
Anemia
O alvo da hemoglobina nestes pacientes é de 10mg/dl. Em casos de Hb mais baixa, recomenda-se a utilização de Agentes Estimuladores da Eritropoiese (AEE) ou eritropoetina (EPO), uma vez descartada causas carenciais (ferro, ácido fólico e vitamina B12).
Desequilíbrios hidroeletrolíticos
Para manter uma euvolemia, recomenda-se a restrição de sal na dieta, podendo se utilizar furosemida, algumas vezes em combinação com metolazona. Em casos de hipercalemia, é preciso restringir o potássio da dieta, evitar IECAs e BRAs e utilizar poliestireno de sódio, se refratária a essas medidas, considerar diálise.
Estágios avançados da Doença Renal Crônica
Em estágios avançados, a diálise pode ser necessária para substituir a função renal. Existem dois tipos principais de diálise: hemodiálise e diálise peritoneal. Apesar de a diálise conseguir substituir algumas funções renais, o transplante renal é a opção mais eficaz para restaurar a funcionalidade do órgão.
Conclusão
A Doença Renal Crônica é uma condição médica complexa e progressiva que afeta uma parcela significativa da população mundial. O diagnóstico precoce, a identificação das causas subjacentes e o tratamento adequado são cruciais para retardar a sua progressão e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
À medida que a pesquisa continua avançando, novas abordagens terapêuticas e estratégias de tratamento continuam a emergir, oferecendo esperança para aqueles que vivem com a doença. Portanto, a educação contínua e o acesso a cuidados médicos de alta qualidade desempenham um papel crucial na abordagem da Doença Renal Crônica.
Continue aprendendo:
- Doença Renal Crônica: Papel da Dieta para a Redução da Gravidade da Doença
- Doença Renal Crônica e inibidores de SLGT2: uma revisão do cenário de tratamento
- Síndrome Hepatorrenal: modificações no diagnóstico
FONTES:
- Kidney Disease Global Outcomes (KDIGO) 2023 Practice Guideline for the evaluation and management of Chronic Kidney Disease.
- Manual de medicina Harrison 20ª edição 2020.
- Empagliflozin in Patients with Chronic Kidney Disease N Engl J Med 2023 Jan 12;388(2):117-127; William G Herrington.
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